Para mim, Le Bonheur, que Agnès Varda realizou em 1965, é um dos mais belos filmes que já foram feitos. Belo, no sentido estrito do termo segundo o dicionário – “que tem forma perfeita e proporções harmônicas; formoso, lindo”.
É um fantástico espetáculo para os olhos.
O filme é cheio, repleto, lotado de tomadas que parecem quadros, pinturas, belas obras de arte. O uso das cores, o cuidadoso, extraordinário, sensacional uso das cores é uma coisa espantosa.
Antes, quero insistir na coisa da beleza. As paisagens são belas. Mostram-se muitas plantas, árvores, flores. Focalizam-se belas casas antigas, belas fachadas de prédios. Os atores são belos. As roupas são belas, cheias de cores. A trilha sonora todinha, todinha, é de Wolfgang Amadeus Mozart.
Tudo é belo.
O filme abre com um close de um girassol. Alternam-se tomadas em close do girassol com tomadas em plano geral de um grupo de girassóis em primeiro plano e, lá ao fundo, num gramado, fora de foco, um casal e duas pequenas crianças. François e Thèrese (na foto), jovem e belo casal, está passando um domingo de sol, de verão, num grande bosque, com seus dois filhinhos, Gisou e Pierrot. Os dois são jovens, belos e felizes, se amam e amam os filhos, e no domingo fazem piquenique no bosque.
Os primeiros 15, 20 minutos deste filme bem curtinho – são apenas 79 minutos, que passam depressa como um raio – mostram o dia-a-dia da família, os pequeninos detalhes de que é feita a vida. François é carpinteiro, trabalha com um tio e alguns amigos numa pequena carpintaria numa pequena cidade, Fontenay. Thèrese é costureira, uma boa costureira, trabalha em casa. Recebe em casa uma cliente que vai se casar, foi a Paris à procura de um vestido de noiva, não gostou de nada do que viu e agora quer que a figurinista do lugar crie o vestido para ela.
Há tomadas de roupa sendo passada a ferro, roupas passadas sendo dobradas, vaso de flor sendo aguado, os pais levando os filhos para a cama, os pais se deitando juntos, se abraçando. Os pequeninos detalhes de que é feita a vida. Uma família que tem o básico e é feliz.
Então, um dia François tem que ir fazer um trabalho em Vincennes, não muito longe de Fontenay. Em Vincennes, precisa telefonar para a carpintaria para falar sobre o andamento do serviço. No posto dos Correios, onde ficam também os telefones públicos, François é atendido por uma linda e simpática funcionária, Émilie. Ela conta para ele que em breve vai se mudar exatamente para Fontenay.
Numa outra vez em que François tem que ir a Vincennes e tem que telefonar, revê Émilie. Saem para tomar um café. Já sabem que querem estar um com o outro.
A seqüência é extraordinária. A montagem é ágil, rápida. Vemos François, vemos Émilie. A câmara pega então uma mesa ao lado, o foco está na bebida que as pessoas da mesa ao lado estão tomando. Pega outra mesa. De novo François, de novo Émilie. Ele pergunta se não podem passear no castelo da região – tomadas rapidíssimas, de pouquíssimos segundos, mostram o que cada um imagina de um passeio deles ao castelo, do lado de fora, do lado de dentro.
François, o carpinteiro criado por Agnès Varda, homem simples, bom, honesto, marido feliz que ama a mulher e os filhos, acredita que pode ter uma felicidade a mais, somar duas felicidades.
20, 30 leituras diferentes
Qualquer obra está aberta a várias diferentes interpretações. Deve haver 20, 30, sei lá quantos tipos de leituras diferentes para a história que Varda nos conta em Le Bonheur. Podem-se achar abordagens filosóficas, psicanalíticas, sociológicas, antropológicas. Será a monogamia uma invenção de parte da humanidade que contraria as leis naturais? Onde começa o moralismo? É possível evitar o sentimento de culpa? Mentir, omitir, é preferível, às vezes, à verdade? – ou qualquer outra coisa parecida, ou diferente. Eu, de minha parte, prefiro não entrar nessa. Prefiro simplesmente desfrutar da beleza do filme.
Um casal de verdade, uma família de verdade
Uma coisa de que eu não me lembrava: o casal de atores que faz o François e Thèrese, Jean-Claude Druout e Claire Druout, era casado na vida real. E os garotinhos que fazem os filhos do casal, Pierrot e Gisou, eram filhos deles na vida real, Olivier e Sandrine Druot. Nos créditos iniciais, eles são até mesmo apresentados de uma maneira que pode ofender as feministas mais radicais: “Jean-Claude Druout, sua mulher Claire e seus filhos Olivier e Sandrine”. Imagine se Agnès Varda, uma feminista de primeira hora, estava querendo colocar Claire como menos importante que Jean-Claude; queria, logicamente, obviamente, apenas enfatizar que o casal que o espectador veria na tela estava reproduzindo o que era na vida real.
Nada de tons pastel, meio tons – são cores fortes, vivas
Para as pessoas mais jovens, pode parecer muito estranho, mas nos anos 60 ainda se fazia a transição do preto-e-branco para o colorido. Nos anos 30 já havia filmes em cores – mas o preto-e-branco continuou a ser usado por muitos diretores em todas as décadas seguintes. Só a partir dos anos 70 os filmes em preto-e-branco passaram a ser gloriosas exceções.
Le Bonheur foi o primeiro filme em cores de Agnès Varda. E haja cores. Nada de tons pastel, meio tons: são cores fortíssimas. O amarelo vivo, dos girassóis da abertura. Os vários verdes do bosque. O azul das paredes da casa de François e Thèrese.
Le Bonheur tem tanta cor que até os fade outs e fade ins entre uma seqüência e outra explodem em cores. O primeiro é em azulão, o segundo é vermelhão, e por aí vai. Nunca vi isso em nenhum outro filme.
Homenagens a cantores, compositores, atores, filmes
Como boa parte dos grandes cineastas de sua geração, Agnès Varda cita, homenageia diversos artistas. Le Bonheur é cheio de referências a atores, cantores, compositores, filmes. François e Thèrese conversam sobre o filme que vão ver na sessão das 21 horas no cinema ali de Fontenay; François pergunta se é um western, e Thèrese diz que não tem cavalos; aí François diz: “Ah, então é um filme francês!”. E Thèrese confirma: é com Brigitte Bardot e Jeanne Moreau, a primeira vez que elas trabalham juntas. (Viva Maria!, a colorida aventura de Louis Malle que reuniu as duas maiores estrelas do cinema francês da época, é do mesmo ano de Le Bonheur, 1965.)
Thèrese então pergunta qual das duas François prefere, e ele diz que prefere Thèrese.
E aí corta, e há uma tomada de um armário dos funcionários da carpintaria onde François trabalha, repleto de fotos de Brigitte e de Jeanne Moreau.
Em diversas outras cenas, aparecem fotos de Sylvie Vartan, grande sucesso do pop francês nos anos 60, de Georges Brassens, uma espécie assim de Noel Rosa deles; há referência à cantora Dalida; e um cartaz de cinema anuncia Detective Story, de William Wyler, de 1951 (no Brasil, Chaga de Fogo) e Irma La Douce, de Billy Wilder, de 1963. Em um aparelho de TV na casa do tio de François, está passando um filme de Jean Renoir, o filho do pintor Auguste – parece que é Le Déjeuner sur l’Herbe, de 1959.
“No meu filme, pecado não existe”
“Pensei nos impressionistas”, disse Varda numa entrevista no ano em que o filme foi feito. “Em seus quadros, há uma vibração da luz e da cor que me parece corresponder exatamente a uma certa definição de felicidade. Aliás, os pintores daquela época adaptaram sua técnica à sua temática, e, assim, eles mostraram piqueniques, refeições sobre a relva, domingos que se aproximavam de uma noção de felicidade. Eu utilizei a cor, porque a felicidade não pode ser ilustrada em preto-e-branco.”
Em outra entrevista, também de 1965, ela vai fundo:
“Há infelicidade na felicidade. Talvez até da pior, como um suicídio. Mas a vida e a felicidade podem coexistir. A felicidade que eu sinto, que eu quis no filme e que eu quero na minha vida, é uma casa alegre, aberta. Não é se esconder, mas enfrentar. A felicidade é uma claridade. No meu filme, o pecado não existe. Nem a baixaria. Mas não estamos habituados a isso, pois é difícil conceber um mundo sem culpa.”
Vou tentar dizer o que vejo no filme. Não o que eu ache que a Varda quis dizer, mas o que o filme diz para mim.
Para mim, que teimo em achar que a menor distância entre dois pontos é uma boa e simples linha reta, Le Bonheur quer dizer que alguma felicidade é possível e, para isso, cada um tem que fazer a sua parte. Há quem complique demais as coisas, e há quem veja as coisas de maneira simples. Quem persiga a infelicidade, e quem busque ser feliz. François e Émilie são do segundo time. Vêem as coisas de maneira simples. Exatamente por isso Varda escolheu como personagens um carpinteiro e uma funcionária dos Correios – gente não intelectualizada, não especialmente culta, porque, aparentemente, quanto mais intelectualizadas são as pessoas, mais se dedicam a perseguir a infelicidade.
“Sou livre, feliz e você não é o primeiro; me ame”, diz Émilie. “Eu conheci Thèrese primeiro, e casei com ela, e a amo, e amo você e sou feliz. Se tivesse conhecido você primeiro, teria casado com você”, diz François.
Então ele acredita que possa ter uma felicidade a mais, somar duas felicidades. E faz a parte dele para desfrutar da felicidade.
Simples assim.
Por Sérgio Vaz - 50 Anos de Filmes
AS DUAS FACES DA FELICIDADE - 1965
Título Original: Le Bonheur
Título em inglês: Happiness
Direção: Agnès Varda
Produção: Mag Bodard
Roteiro: Agnès Varda
Gênero: Drama
Origem: França
Ano: 1965
Música: Jean-Michel Defaye, Wolfgang Amadeus Mozart
Fotografia: Claude Beausoleil, Jean Rabier
http://www.imdb.com/title/tt0058985/ - 7.6/10
Sinopse:
Um homem ama sua mulher, seus filhos e a natureza. Ele encontra uma outra mulher, que adiciona felicidade à sua felicidade. Apaixonado pelas duas, ele não quer se privar, nem se esconder, nem mentir.
Elenco:
Jean-Claude Drouot - François Chevalier
Claire Drouot - Thérèse Chevalier
Olivier Drouot - Pierrot Chevalier
Sandrine Drouot - Gisou Chevalier
Marie-France Boyer - Émilie Savignard
Marcelle Faure-Bertin
Manon Lanclos
Sylvia Saurel
Marc Eyraud - J. Chevalier
Christian Riehl
Paul Vecchiali - Paul
Informações do Arquivo:
Formato: AVI
Qualidade: DVDRip (cópia restaurada edição da Criterion)
Áudio: Francês
Legendas: Português/BR
Duração: 79 min
Cor
Tamanho: 704 MB em 3 partes
DOWNLOAD:
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SENHA PARA DESCOMPACTAR: acullen
Olá!
ResponderExcluirSou leitor do TelhadosdoMundofeníciosAvolta e sou cinéfilo de carteirinha. Eu estou mandando esse email porque estou trabalhando numa empresa que desenvolveu um portal sobre cinema - o Cinema Total (www.cinematotal.com). Um dos atrativos do site é que você cria uma página dentro do site, podendo escrever textos de blog e críticas de filmes. Então, gostaria de sugerir que você também passasse a publicar seus textos no Cinema Total - assim você também atinge o público que acessa o Cinema Total e não conhece o TelhadosdoMundofeníciosAvolta.
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Um abraço,
Marcos
www.cinematotal.com
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